quinta-feira, 14 de maio de 2009

Ser leitor - Celso Antunes

Ser leitor
Celso Antunes

É muito importante ensinar uma pessoa a ler, e não deve existir nada mais gratificante para um alfabetizador que saber que é capaz de trazer luz a quem sempre viveu na escuridão do analfabetismo. Se é verdade que existem partos naturais e que, portanto, para vir ao mundo algumas pessoas dispensam a ajuda de outras, não é menos verdade que são raríssimas as situações de auto-alfabetização e, portanto, quem mostra os caminhos das letras jamais poderá ser envolvido pela dúvida sobre sua essencialidade como pessoa e sua grandeza como profissional. Todos que lêem necessitariam guardar com ternura e profundo afeto o nome e a memória viva daquele ou daquela que, em um dia remoto do passado, iniciou-os na monumental tarefa de transformar os símbolos em novos pensamentos. Pouco importa se alfabetizar é difícil ou fácil. O certo é que esse ato simboliza uma grandiosa tarefa, raramente exaltada.

Mas, tão importante quanto ensinar alguém a ler é fazer desse alguém um leitor.
E, nesse contexto, é necessário realçar as colossais diferenças entre "saber ler", isto é, decifrar a mensagem simbólica expressa pelas sílabas e palavras e "formar um leitor" e, assim, induzir o indivíduo que está aprendendo a ingressar no misterioso universo do pensamento de outra pessoa — o autor — para com esta compartilhar pensamentos, aceitando-os ou negando-os.

A verdadeira significação de um texto escrito jamais se encontra na palavra e no pensamento do escritor e nem mesmo na fria compreensão de seu leitor, mas na interação que pode surgir entre estes quando estimulada por pensamentos diferentes navegando em torno de idéias comuns e, dessa forma, transformando palavras mortas em pensamentos vivos. Um texto, para o verdadeiro leitor, não tem significado similar ao que apresenta para uma pessoa simplesmente alfabetizada, pois, para esta, existe a finalidade que se completa com a aquisição da idéia escrita, enquanto, para o leitor, existe um aprimoramento visual, quase tátil, para descobrir aquilo que está nas linhas e entrelinhas do texto que foi pensado pelo autor. O verdadeiro leitor é sempre capaz de retirar o texto da esfera real para, ao decifrar o universo de seus segredos, incluí-lo no contexto de um diálogo reflexivo, em que vivências diferentes, do autor e do leitor, contextualizam-se em simbologias não necessariamente iguais. O que está escrito por Paulo pode ser o mesmo que está escrito para Mário, mas o que é verdadeiramente lido por Paulo não pode ser o mesmo que é lido por Mário, uma vez que o verdadeiro leitor traz para o contexto de sua vida, de seu entorno e de suas emoções as referências que conquistou no texto. Em síntese, para um texto produzido existem milhares de leituras possíveis.

Mas, se é essencial que haja alfabetizadores, não nos parece menos essencial que existam professores que façam de seus alunos verdadeiros leitores, levando-os a descobrir a diferença entre a decodificação de uma palavra e os pensamentos que esta pode assumir quando interage com o universo de idéias pessoais que cada verdadeiro leitor carrega. Ler "O cachorro é bonito" pode significar apenas uma informação sobre uma particularidade desse animal, mas pode também simbolizar todas as associações com os cães que povoam nossa imaginação e passado e toda a dimensão da beleza que, pouco a pouco, a vida nos levou a construir. Mas, se mostrar aos alunos a diferença entre ser "capaz de ler" e "ser um verdadeiro leitor" é importante, mais ainda é praticar inúmeras vezes a experiência de se compartilhar leituras e, por suas estruturas, um quase e novo aprender a caminhar, descobrindo segredos, percebendo desafios, identificando atalhos. E essa prática não ocorre acidentalmente nesta ou naquela aula, neste ou naquele momento em que se fez surgir a oportunidade, mas na progressiva construção interior do próprio professor em saber que é um "construtor de leitores" e, sensibilizado por essa descoberta, fazer de cada oportunidade, de cada notícia, de cada frase ou tema um exercício de caminhada e de desvendamento.

Tão importante quanto fazer de um aluno um verdadeiro leitor e, portanto, tão importante quanto se sensibilizar pela grandeza dessa missão é percebê-la literalmente interdisciplinar e, dessa forma, praticá-la com frases, mensagens e textos desta e daquela disciplina, até mesmo para que o aluno progressivamente perceba que cada ciência ou arte possui forma peculiar de leitura.

Ler uma frase como um leitor autêntico é descobri-la com olhos educados e a visão educada de um geógrafo é diferente da de um biólogo ou de um historiador, assim como olhar uma paisagem ao amanhecer com olhos não educados é essencialmente diferente de aprender a olhá-la com os olhos de Van Gogh ou Picasso.

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